Ah, o bom e velho alfabeto latino. É aquele que você conhece desde criança. Aquele que você está encarando nesse exato momento enquanto lê este texto. E o alfabeto que a maioria das línguas do mundo usa, cada uma a sua maneira. Essa adoção tão massiva por tantas línguas e culturas no mundo inteiro é um atestado à sua enorme flexibilidade, e talvez até a sua simplicidade. Então seria o alfabeto latino o sistema de escrita mais simples do mundo?
O alfabeto mundial
Na verdade, dá pra se argumentar que é, de certa forma, o alfabeto mais complexo. É um alfabeto criado para uma língua específica: o latim. Era um sistema de fato simples. Eram apenas 21 letras, não existiam letras minúsculas, nem acentos e nem pontuação. Todas as palavras eram escritas juntas, sem espaço entre elas. Se houvesse alguma confusão sobre onde uma palavra terminava e outra começava, adicionava-se um ponto entre elas.
A inscrição Duenos, um dos registros mais antigos do latim, datado do século VI a.C.
No entanto, o tempo passa e as línguas evoluem. Surgiu a necessidade de se representar novos sons, e com isso, novas letras foram introduzidas. Y e Z, que tinham sido cortados do alfabeto, foram reintroduzidos para escrever radicais gregos. Surgiram as letras J, U, V e W. As línguas românicas (português, espanhol, italiano, francês, entre outras), sendo nascidas do latim, sempre adotaram o seu alfabeto e, por serem nascidas do latim vulgar, talvez sejam as que adaptaram o alfabeto latino com maior facilidade.
A expansão pela Europa
Mas a cada nova língua que entrava na festa latina, mais mudanças e inovações eram criadas. Um som que é muito comum numa língua pode ser incomum ou até inexistente em outra. O que fazer quando uma letra puder plausivelmente representar dois ou três sons semelhantes mas claramente distinguíveis? E se uma palavra escrita desse jeito puder ser confundida com essa outra palavra que se escreve do mesmo jeito mas se pronuncia diferente e tem outro significado? Era necessário adicionar novas letras, novos diacríticos (sinais gráficos adicionados a uma letra para mudar sua leitura, como acentos, cedilha, til, entre outros), e também ser criativo com dígrafos e trígrafos (sequências de duas ou três letras para formar um som).
As línguas germânicas, como o inglês, o alemão, o dinamarquês, entre outras, que até então usavam runas, adotaram o alfabeto latino como parte do processo de cristianização dos povos germânicos na Europa Central e, mais tarde, na Escandinávia. As letras originais do latim não eram suficientes. Por exemplo, o inglês usava a letra Ð (chamada eth) como substituto da runa ᚧ, que mais tarde foi substituída pelo TH.
Runas anglo-saxônicas do século IX.
Na minha opinião, o alfabeto latino falhou com as línguas germânicas. Muitas delas ainda mantêm "gambiarras" para ajustar limitações dela, como o ß no alemão (uma letra que não é um beta, mas uma união acidental do S e do Z na escrita gótica), mas acho que nenhum caso é pior que o do inglês. Hoje em dia, não existe nenhuma consistência real e previsível na sua escrita. É verdade que boa parte do problema se deve à Grande Mudança Vocálica, mas as adaptações feitas com o tempo foram mal pensadas e nem sempre com as melhores intenções.
No resto do mundo
Por todos os outros continentes do mundo, a era das colonizações significou a dominação da cultura europeia. Povos na América e na África foram forçados a falar línguas europeias, e das línguas nativas que sobreviveram, principalmente as que não tinham sistema de escrita ainda, acabaram não tendo escolha senão usar o alfabeto latino.
A reza Pai Nosso da Bíblia traduzida para suaíle.
Mas a Ásia é um caso à parte. Lá, o alfabeto latino sempre teve competição feroz. Muitas das línguas da região usam seus sistemas próprios de escrita, ou adotaram outros sistemas muito populares, principalmente o chinês e o árabe. O vietnamita se destaca como uma grande exceção. Uma língua tonal com uma riqueza vocálica incrível, o vietnamita, que usou a escrita chinesa no passado, desafiou o alfabeto latino em níveis provavelmente nunca atingidos antes. Mesmo a introdução de várias letras e dígrafos totalmente inéditos não foram suficientes para evitar uma ortografia complexa. Você ainda tem uma língua em que uma letra pode ter diversos sons, e sons que podem ser representados por letras diferentes.
Talvez essa seja a razão por que tantos países asiáticos mantêm seus próprios sistemas de escrita. Quando ele é feito com a sua própria língua em mente, ele funciona melhor e é muito mais fácil de entender.
Outros sistemas de escrita
O hangeul é um ótimo exemplo de alfabeto que funciona muitíssimo bem no coreano, e é, inclusive, muito fácil para estudantes de coreano aprenderem. As letras representam consoantes e vogais, como no alfabeto latino, mas elas se unem e se deformam para caber num espaço retangular de tamanho definido para formar uma sílaba. Sons parecidos têm grafias parecidas, então um pode ajudar a lembrar o som do outro.
O alfabeto cirílico (criado por São Cirilo numa mistura sem muita criatividade do alfabeto latino com o grego) funciona muito bem com línguas eslavas, porque foi feito especificamente para elas. O alfabeto cirílico arcaico tinha 44 letras, mas cada língua o modificou e padronizou de formas diferentes, e várias dessas letras caíram em desuso. Aliás, polonês é uma língua eslava que decidiu pelo alfabeto latino, e foi outra que sofreu com a introdução de várias letras, diacríticos e dígrafos novos.
Por outro lado, o japonês tem um sistema de escrita bem complexo. Além de dois alfabetos próprios (que na verdade são mais silabários) que são fáceis de aprender, o japonês também usa milhares dos caracteres chineses, que são adaptados à leitura japonesa e, como foram afetados pela influência do tempo, da cultura de da própria língua, podem ter mais de uma leitura. Na verdade, a maioria dos caracteres tem pelo menos duas leituras no japonês. Infelizmente, o japonês não pode se dar ao luxo de se livrar da escrita chinesa (como o coreano fez depois da Segunda Guerra Mundial) porque é uma língua de repertório fonético muito baixo, e tem muitíssimos homônimos. Escrever com apenas hiragana e katakana poderia levar a muitas ambiguidades.
Exemplo de frase em japonês que usa, ao mesmo tempo, hiragana, katakana e kanji, seus três sistemas de escrita.
Posso estar enganado, mas eu diria que ler em japonês é mais difícil do que em chinês. A escrita chinesa foi feita para o chinês e, como um amigo meu me disse uma vez, se fosse tão difícil assim, não teria existido por milhares de anos. O fato de o sistema chinês ser tão antigo é prova do seu sucesso.
Como eu disse antes, sistemas de escrita costumam ser mais simples e funcionar melhor quando são usados nas línguas para quais foram inventadas. Todo o resto exige adaptações, às vezes muito extensas. Essas adaptações tendem a introduzir complexidades na ortografia que dificultam a aprendizagem. Isso é especialmente verdadeiro com o alfabeto latino, que é o sistema de escrita mais usado no mundo.
